“No fim de semana
passado, três homens suspeitos de roubo foram linchados na periferia de
Salvador. No sábado, Emílio Oliveira Silva e Michael Santa Izabel, acusados de
saquear residências da vizinhança, foram linchados por mais de 30 pessoas.
Emílio fio morto a paulada. Domingo, a vítima foi um homem de identidade
desconhecida. Ele também foi perseguido por mais de 30 moradores, que o
acusavam de roubar uma TV. Morreu no local, a 200 metros de onde Emílio e
Michael foram atacados. Na noite de segunda feira, em Ribeirão Preto(SP), o
estudante Caio Maneghetti Fleury Lombardi que invadiu um posto de gasolina,
atropelou o frentista Carlos Pereira Silva e tentou fugir, sofreu uma tentativa
de linchamento. Por fim, na quinta feira, um adolescente da Fundação Casa
(ex-Febem) foi linchado até a morte por outros internos em Franco da Rocha(SP).
Foram
cinco casos noticiados em 6 dias. Não se trata de uma epidemia – em nosso
contexto, é algo normal. José de Souza Martins, sociólogo e colaborador do “Alias”,
estuda linchamentos há quase 30 anos e documentou 2 mil casos. [...]
O Brasil é o país
que mais lincha no mundo?
Possivelmente.
Isso nos últimos 50 anos, período que minha pesquisa abrange. Não dá para ter
certeza, porque linchamento é o tipo de crime inquantificável. Mesmo os
americanos, quando tentaram numerar seus casos, tiveram fontes precárias. O
linchamento é um crime altruísta, ou seja, um crime social com intenções
sociais. O linchador age em nome da sociedade. É um homem de bem que sabe que
está cometendo um delito e não quer visibilidade. Por outro lado, no Código
Penal brasileiro não existe o crime de linchamento, somente homicídio. Então,
ele não aparece nas estatísticas. Os casos são diluídos. Estimo que aconteçam
de 3 a 4 linchamentos no País por semana, na média. São Paulo é a cidade que
mais lincha. Depois vêm Salvador e Rio de Janeiro.
Que análise o senhor faz de um país
habituado ao linchamento?
As
sociedades lincham quando a estrutura do Estado é débil. Há momentos históricos
em que isso acontece. Na França, depois da 2º Guerra Mundial, quando não havia
uma ordem política, havia a tonsura (a raspagem dos cabelos) de mulheres que
tiveram relações sexuais com nazistas. Era uma forma de estigmatizar, para que
ela ficasse marcada. O linchamento original, nos Estados Unidos, tinha essa
característica.
O que configura o
linchamento?
É
uma forma de punição coletiva contra alguém que desenvolveu uma forma de
comportamento antissocial. O antissocial varia de momento para momento e de
grupo para grupo. Na França, ter traído a pátria era um motivo para linchar. No
caso da Itália, aconteceu o mesmo. No Brasil, é o fato de não termos justiça,
pelo menos na percepção das pessoas comuns. Nesse caso do atropelamento de um
frentista em Ribeirão Preto, por exemplo, o delegado decidiu inicialmente por
crime culposo (depois mudou para doloso). As pessoas que tentaram linchar o
rapaz acreditavam que não haveria justiça, já que a pena seria mais leve por
conta da atenuante.
Qual o perfil de quem é linchado?
Em
geral, é linchado o pobre, mas há várias exceções. Há uma pequena porcentagem
superior de negros em relação a brancos. Se um branco e um negro,
separadamente, cometem o mesmo crime, a probabilidade de o negro ser linchado é
maior.
Que criminoso é mais vulnerável?
O
linchado pode ser desde o ladrão de galinha até o estuprador de crianças. Sem dúvida,
os maiores fatores são os casos de homicídio. Se a vítima do assassino é uma
criança ou um jovem, ou se houve violência sexual, os linchamentos são
frequentes. Há muitas ocorrências por causa de roubo, especialmente se o ladrão
é contumaz. Acredito que tenha sido o caso dos rapazes em Salvador. A própria população
estabelece uma gradação de pena que vai impor ao linchado. Essa é a dimensão de
racionalidade num ato irracional.
Como funciona essa gradação?
Um
ladrão de galinha vai sair muito machucado – e pode acontecer de ele morrer. Mas
o risco de ser queimado é mínimo. Co o estuprador é o contrário. Há também uma
escala de durabilidade do ódio. Se um ladrão sobreviver durante 10 minutos de
ataque, está salvo. Tem havido muitas tentativas de linchamento em acidentes de
trânsito. Mas normalmente a polícia chega logo e evita o ataque.
Mulheres são linchadas?
É raríssimo. Mos
2 mil casos que estudei, há dois ou três em que um mulher foi vítima. Agora há
muitas mulheres linchadoras no Brasil. Mulheres e crianças.
Quem são os linchadores no Brasil?
Não
há uma divisão de ricos e pobres. De modo geral, os linchamentos são urbanos. Ocorrem
em bairros de periferia. Porém, há linchamentos no interior do país, onde quem
atua é a classe média. O caso mais emblemático é o de Matupá, no Mato Grosso. O
linchamento foi filmado e passado pela televisão, no noticiário. Três sujeitos
assaltaram o banco, a população conseguiu linchá-los e queimá-los vivos. Isso foi
à classe média. E quando a classe média lincha, a crueldade tende a ser maior,
por que ela tem prazer no sofrimento da vitima. O pobre é igualmente radical,
porém é mais ritual na execução do linchamento.
[...]
Estamos todos sujeitos a participar de um
linchamento?
Se você tem
valores bem fundamentados, não vai participar de um linchamento. Ele envolve
pessoas cuja referência social é frágil. O problema é que elas são maioria no
Brasil. Estima-se que 500 mil brasileiros tenham participado de linchamento nos
últimos 50 anos. Não é um número pequeno.
Matéria de Flávia Tavares para o Caderno “Alias”, do
jornal o Estado de S. Paulo, de 17
fev. 2008. Disponível em: http://www.estadao.com.br.
Acesso em: 21 nov. 2008.
Esta atividade estará liberada para a realização no período de 01/05/2013 à 11/05/2013.